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sexta-feira, 17 de junho de 2011

Garantir Direitos ou Atender Necessidades?


Quando penso em direitos é difícil não pensar em intervenção, é difícil não pensar também em obrigar alguém a fazer algo para um suposto “bem comum”. Nega-se ostensivamente a capacidade para uma ação.

Garantir direitos é algo dúbio e encerra uma noção de que essa garantia irá ser exercida por um poder que pode curvar e alienar a vontade de quem quer que seja.

As leis deveriam ser construídas sob um senso de justiça, mas na humanidade histórica foram sempre convencionadas por poucos: senhores, elites, sacerdotes.. toda a sorte de pessoas que detém o poder. Não raro as leis se distanciaram das aspirações coletivas, comuns. Então encerraram intrinsecamente injustiças impostas.

O agente impositor contemporâneo, o Estado, foi historicamente retro-legitimado pela lei ou legitimado pela força. Coação e coerção.

Assim as leis encerram como pontos comuns não só o favorecimento de certas classes em detrimento de outras, mas a violência justificável, a imposição do medo e a manutenção de sua fonte: no caso o Estado.

O sistema de lei é intrinsecamente violento e, ao contrário do que se propaga, não foi feito para coibir a violência do Homem, mas fomenta-a e conserva, bem como a ganância o territorialismo e todas as formas competitivas de sentimentos (ou resquícios de instinto).

Por outro lado quanto se utiliza o sentimento gregário humano em cooperação, não há a necessidade, por lógica, de competição ou imposição. Atender, não por regra, às próprias necessidades, mas as da prole e do grupo social é um comportamento matriarcal que garantiu a evolução de muitas espécies incluso a humana. A distorção darvinista garantiu a competição como mecanismo da evolução, em consonância com a cultura anglo-europeia de sua época. A cooperação claramente é o mecanismo mais eficiente e criativo para a evolução.

Quando se busca utilizar recursos para atendimento de necessidades não se busca os excedentes ou a escassez e por isso não se precisa da força ou criar o conceito de propriedade para manter excedentes. Estes sempre foram roubados ao coletivo e justificados por gerações de economistas. A nobreza e a excelência da criatividade não se expressam pelo instinto de disputa, mas pelo espírito associado à plenitude que humanamente é coletiva e busca atender ao coletivo. Seja o que for, nunca se lhe faz somente para si.

O instinto de sobrevivência na escassez foi sistematicamente corrompido e moldado de forma a torná-lo, assim como à violência, condições básicas nas culturas que vieram a ser (e hoje são) hegemônicas. Esse é o legado das sociedades patriarcais, beligerantes e cronicamente violentas. A hierarquia e a punição são seus traços constantes. Se esses traços não são postos às claras e discutidos cria-se o discurso legalista que a tudo naturaliza com argumentos místicos. O horror torna-se então valor para trocas. Paga-se tanto para infligi-lo quanto para dele ficar isento. Tomam-se propriedade e lei como garantias.


Como uma mentira pôde ser tão bem contada?


Budha tem a resposta, mas afinal somos ocidentais e preferimos escrever livros, tratados recheados de solenidades..... Fingimento que justifica a perversidade.

terça-feira, 14 de junho de 2011

Receita e Modo de fazer


Entrego, confio, aceito e agradeço...


http://www.youtube.com/watch?v=357UuB48cF0&feature=related

quinta-feira, 28 de abril de 2011

Eu sei, mas não devia



Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.

A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.

A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagar mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.

A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.

A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.

A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.

A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.

(1972)


Marina Colasanti
nasceu em Asmara, Etiópia, morou 11 anos na Itália e desde então vive no Brasil. Publicou vários livros de contos, crônicas, poemas e histórias infantis. Recebeu o Prêmio Jabuti com Eu sei mas não devia e também por Rota de Colisão. Dentre outros escreveu E por falar em Amor; Contos de Amor Rasgados; Aqui entre nós, Intimidade Pública, Eu Sozinha, Zooilógico, A Morada do Ser, A nova Mulher, Mulher daqui pra Frente e O leopardo é um animal delicado. Escreve, também, para revistas femininas e constantemente é convidada para cursos e palestras em todo o Brasil. É casada com o escritor e poeta Affonso Romano de Sant'Anna.

domingo, 6 de março de 2011

O tempo da percepção (ou) A percepção do tempo


De acordo com o tempo geológico e antes dele o tempo cósmico as nuvens infidáveis de pó se condensaram no "vazio", a tal ponto e em tal dimensão que o colapso foi iminente (para uma escala temporal cósmica).

Quando olho um caramujo sinto bastante forte a noção de escalas dentro daquilo que chamamos de tempo. O incômodo ou o prazer que a diferença de escala temporal gera é um fenômeno interessante para a mente curiosa, a do observador.

As diferenças podem ser mais objetivas ou apenas "percepção", o que torna tudo ainda mais interessante e instável. Isso é uma das faces daquilo chamado de diversidade.

A diversidade nas percepções em diferentes seres causa, para cada Ser, um evento singular: a experiência.

Objetivamente a escala de tempo de uma bactéria pode ser de minutos, uma borboleta dias, um homem anos, uma montanha dezenas de milênios. A experiência depois da percepção (ou o contrário) faculta entrar na escala de tempo de outro ente, de outra espécie ou de outra grandeza física... sem pagar qualquer "pedágio" de uma até outra. As únicas ferramentas necessárias são a observação e a imaginação.

É claro que para chegar até este raciocínio eu pulei o advento da auto-consciência e da inteligência humana, mas isso agora não é o mais intrigante a se pensar...

Pensaria em como pode se estabelecer alguma referência, algum "ponto de apoio" (por assim dizer), alguma constante para que possa estudar, senão o Cosmo, o tempo percebido.

Com que muleta lógica poderei (emos) vencer a limitação do raciocínio frente à realidade?

Em princípio não se usará a imaginação, pois ela se apresenta bastante volátil frente a qualquer referencial e como não entendo nada de física (matematicamente falando) usarei noções mais primárias.

A noção mais primária que me ocorre é a de tamanho, logo deve haver alguma razão inversamente proporcional entre tamanho e tempo. Esqueçamos as medidas de referência, consideremos, por um minuto, o tempo como sendo intrínseco e característico para cada e em cada ente fisico e/ou biológico.

Isso quer dizer, não há um tempo comum como na "ciência" econômica há uma moeda comum que desrespeita a subjetividade do valor. O tempo para o ente e para o ser é único.

Continuando.. quanto maior, maior a escala de tempo, ou seja: grande e lento vs pequeno e rápido, seja na dinâmica deste, seja na existência. Vamos agora superar desde a bactéria até a montanha, vamos a escala estelar! Uma estrela, o maior objeto singular compacto e diferenciável. Perfeitamente limitável a uma grande esfera incandescente de matéria/energia. Imaginemos uma das grandes...

Seu tamanho? Milhares de vezes maior que nosso Sol. Sua "idade"? vários bilhões de anos. Qualificamos nossa comparação!

Como todos os sistemas elegantes e "bem resolvidos" essa generalização sobre tamanho da estrela tem alguns incômodos. Essas pequenas nuances que podem colapsar todo um sistema para um estado radicalmente diferente e imprevisível. Esse é o chamado Caos.

O Caos é uma dessas coisas importantes, mal interpretadas e não entendidas por muito tempo.. um gerador de mitos..

O incomodo é: sabe-se que essa nossa estrela pode colapsar e alterar numa fração de segundos sua forma e sua essência (por assim dizer). Sua escala que até então era um baile cósmico agora é silêncio e despojos espalhados. Explosão! a expressão final do mínimo agente, precedente do Caos.

Porque essa metáfora estelar é tão incômoda? Talvez pelo mesmo motivo que a morte orgânica o seja: desidentificação, desconhecimento, incerteza, impermanência.

Enquanto a essência do que entendemos estiver pautada na ordem estável e inerte será difícil compreender o Tudo mais.. "A única constante é a impermanência" Fatalismo? Nihilismo? não, não, não.... muito pelo contrário...

A nossa concordância ou não com as leis do Universo não é requisito para a nossa Existência, assim como a racionalização e as teorias não são indispensáveis ao Saber, à Sabedoria.

A imaturidade leva a futlidade, já a humildade não se limita a nada

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

a perspectiva do verme


Tudo no Universo tem uma origem, o próprio universo conhecido tem. As imensidões, para os humanos intranponíveis, milhares de anos à velocidade de luz entre uma e outra galáxia.. e elas ainda estão em expansão.

O nosso Sol, uma estrela amarela pequena, comum no Universo. Nela gravitam nove planetas cujo um dos pequenos é a Terra.

É preciso se lembrar que nosso sistema solar é remoto em relação a nossa galáxia, pequeno.... ....ele é bastante comum. No universo conhecido a cifra de mundos gravitando estrelas supera os trilhões (10^12), os possívelmente abençoados com a vida (em qualquer tempo) superam centenas de milhões.

Onde terá/teve a vida evoluido até a inteligência, auto-consciência?

Assim, sempre parece insensato, neste tipo de escala, tentar encaixar o Universo em um esquema (científico, reliogioso, filosófico) que amenize o desconforto do frágil Homem.

Em todas as nossas maravilhas e insanidades fica um traço evidente: a infantilidade dos humanos, seja esta sentimental, intelectual, religiosa ou coletiva. Uma leva a outra reciprocamente.

As religiões representam os estertores de uma siciedade que sempre, por diversos motivos, tenta ligar sua existência a valores, mas com o tempo todos esses valores se tornaram acessórios.. em nome de ideais fúteis como poder, posse, ideal, crença... o medo.

Fica clara nossa infantilidade tanto no materialismo cego quanto nos religiosismos e outras posturas fanáticas, histéricas. Todos os homens que enxergaram/enxergam além foram taxados, perseguidos pelo medo e a ignorância dos demais. Logo em seguida foram mortos, transformados em mito falseados e imitados como uma criança amarra um pano vermelho nas costas para imitar o super heroí americanóide.

Dormimos um sono funesto sonhando sonhos perversos, conosco e com o outro.. assim estamos Humanidade. Criamos leis e um sistema econômico que encarnam perfeitamente a inferioridade de nossas personalidades, de nossa cultura ocidental pós industrial, de nossa sociedade.

As bases da moderna economia (macro e micro) são a ganância, cobiça, egoísmo... o genocídio, roubo e destruição do único patrimônio cósmico que nos cabe atualmente: a nossa humanidade e o planeta. O lucro é a noção que condensa toda a barbárie socialmente aceita.

Será necessário sentir toda a dor de nossa falta de bom senso antes do retorno a saúde plena de nossa sociedade? Será que as mentiras carcomidas, os mitos ensinados nas escolas como forma de bestialização do povo permanecerão por muito tempo ainda?

Quanto tempo até termos compaixão de nossa própria miséria para daí aceitá-la e depois quem sabe fazer algo pelo outro, verdadeiramente?

Vamos pensar um pouco sobre o que nesse Universo é estável e duradouro... nosso modo de vida é que não é...

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

O império do consumo

Envolverde

30 de dezembro de 2010 às 11:25h

Esta ditadura da uniformização obrigatória impõe, no mundo inteiro, um modo de vida que reproduz os seres humanos como fotocópias do consumidor exemplar.

Por Eduardo Galeano


A produção em série, em escala gigantesca, impõe em todo lado as suas pautas obrigatórias de consumo. Esta ditadura da uniformização obrigatória é mais devastadora que qualquer ditadura do partido único: impõe, no mundo inteiro, um modo de vida que reproduz os seres humanos como fotocópias do consumidor exemplar.

O sistema fala em nome de todos, dirige a todos as suas ordens imperiosas de consumo, difunde entre todos a febre compradora; mas sem remédio: para quase todos esta aventura começa e termina no écran do televisor. A maioria, que se endivida para ter coisas, termina por ter nada mais que dívidas para pagar dívidas as quais geram novas dívidas, e acaba a consumir fantasias que por vezes materializa delinquindo.

Os donos do mundo usam o mundo como se fosse descartável: uma mercadoria de vida efémera, que se esgota como se esgotam, pouco depois de nascer, as imagens disparadas pela metralhadora da televisão e as modas e os ídolos que a publicidade lança, sem tréguas, no mercado. Mas para que outro mundo vamos mudar-nos?

A explosão do consumo no mundo atual faz mais ruído do que todas as guerras e provoca mais alvoroço do que todos os carnavais. Como diz um velho provérbio turco: quem bebe por conta, emborracha-se o dobro. O carrossel aturde e confunde o olhar; esta grande bebedeira universal parece não ter limites no tempo nem no espaço. Mas a cultura de consumo soa muito, tal como o tambor, porque está vazia. E na hora da verdade, quando o estrépito cessa e acaba a festa, o borracho acorda, só, acompanhado pela sua sombra e pelos pratos partidos que deve pagar.

A expansão da procura choca com as fronteiras que lhe impõe o mesmo sistema que a gera. O sistema necessita de mercados cada vez mais abertos e mais amplos, como os pulmões necessitam o ar, e ao mesmo tempo necessitam que andem pelo chão, como acontece, os preços das matérias-primas e da força humana de trabalho.
O direito ao desperdício, privilégio de poucos, diz ser a liberdade de todos. Diz-me quanto consomes e te direi quanto vales. Esta civilização não deixa dormir as flores, nem as galinhas, nem as pessoas. Nas estufas, as flores são submetidas a luz contínua, para que cresçam mais depressa. Nas fábricas de ovos, as galinhas também estão proibidas de ter a noite. E as pessoas estão condenadas à insônia, pela ansiedade de comprar e pela angústia de pagar. Este modo de vida não é muito bom para as pessoas, mas é muito bom para a indústria farmacêutica. Os EUA consomem a metade dos sedativos, ansiolíticos e demais drogas químicas que se vendem legalmente no mundo, e mais da metade das drogas proibidas que se vendem ilegalmente, o que não é pouca coisa se se considerar que os EUA têm apenas cinco por cento da população mundial.

“Gente infeliz os que vivem a comparar-se”, lamenta uma mulher no bairro do Buceo, em Montevideo. A dor de já não ser, que outrora cantou o tango, abriu passagem à vergonha de não ter. Um homem pobre é um pobre homem. “Quando não tens nada, pensas que não vales nada”, diz um rapaz no bairro Villa Fiorito, de Buenos Aires. E outro comprova, na cidade dominicana de San Francisco de Macorís: “Meus irmãos trabalham para as marcas. Vivem comprando etiquetas e vivem suando em bicas para pagar as prestações”.

Invisível violência do mercado: a diversidade é inimiga da rentabilidade e a uniformidade manda. A produção em série, em escala gigantesca, impõe em todo lado as suas pautas obrigatórias de consumo. Esta ditadura da uniformização obrigatória é mais devastadora que qualquer ditadura do partido único: impõe, no mundo inteiro, um modo de vida que reproduz os seres humanos como fotocópias do consumidor exemplar.

O consumidor exemplar é o homem quieto. Esta civilização, que confunde a quantidade com a qualidade, confunde a gordura com a boa alimentação. Segundo a revista científica The Lancet, na última década a “obesidade severa” aumentou quase 30% entre a população jovem dos países mais desenvolvidos. Entre as crianças norte-americanas, a obesidade aumentou uns 40% nos últimos 16 anos, segundo a investigação recente do Centro de Ciências da Saúde da Universidade do Colorado.

O país que inventou as comidas e bebidas light, os diet food e os alimentos fat free tem a maior quantidade de gordos do mundo. O consumidor exemplar só sai do automóvel par trabalhar e para ver televisão. Sentado perante o pequeno écran, passa quatro horas diárias a devorar comida de plástico.
Triunfa o lixo disfarçado de comida: esta indústria está a conquistar os paladares do mundo e a deixar em farrapos as tradições da cozinha local. Os costumes do bom comer, que veem de longe, têm, em alguns países, milhares de anos de refinamento e diversidade, são um patrimônio coletivo que de algum modo está nos fogões de todos e não só na mesa dos ricos.

Essas tradições, esses sinais de identidade cultural, essas festas da vida, estão a ser espezinhadas, de modo fulminante, pela imposição do saber químico e único: a globalização do hambúrguer, a ditadura do fast food. A plastificação da comida à escala mundial, obra da McDonald’s, Burger King e outras fábricas, viola com êxito o direito à autodeterminação da cozinha: direito sagrado, porque na boca a alma tem uma das suas portas.

O campeonato mundial de futebol de 98 confirmou-nos, entre outras coisas, que o cartão MasterCard tonifica os músculos, que a Coca-Cola brinda eterna juventude e o menu do MacDonald’s não pode faltar na barriga de um bom atleta. O imenso exército de McDonald’s dispara hambúrgueres às bocas das crianças e dos adultos no planeta inteiro. O arco duplo desse M serviu de estandarte durante a recente conquista dos países do Leste da Europa. As filas diante do McDonald’s de Moscou, inaugurado em 1990 com fanfarras, simbolizaram a vitória do ocidente com tanta eloquência quanto o desmoronamento do Muro de Berlim.

Um sinal dos tempos: esta empresa, que encarna as virtudes do mundo livre, nega aos seus empregados a liberdade de filiar-se a qualquer sindicato. A McDonald’s viola, assim, um direito legalmente consagrado nos muitos países onde opera. Em 1997, alguns trabalhadores, membros disso que a empresa chama a Macfamília, tentaram sindicalizar-se num restaurante de Montreal, no Canadá: o restaurante fechou. Mas em 1998, outros empregados da McDonald’s, numa pequena cidade próxima a Vancouver, alcançaram essa conquista, digna do Livro Guinness.

As massas consumidoras recebem ordens num idioma universal: a publicidade conseguiu o que o esperanto quis e não pôde. Qualquer um entende, em qualquer lugar, as mensagens que o televisor transmite. No último quarto de século, os gastos em publicidade duplicaram no mundo. Graças a ela, as crianças pobres tomam cada vez mais Coca-Cola e cada vez menos leite, e o tempo de lazer vai-se tornando tempo de consumo obrigatório.
Tempo livre, tempo prisioneiro: as casas muito pobres não têm cama, mas têm televisor e o televisor tem a palavra. Comprados a prazo, esse animalejo prova a vocação democrática do progresso: não escuta ninguém, mas fala para todos. Pobres e ricos conhecem, assim, as virtudes dos automóveis do último modelo, e pobres e ricos inteiram-se das vantajosas taxas de juros que este ou aquele banco oferece.

Os peritos sabem converter as mercadorias em conjuntos mágicos contra a solidão. As coisas têm atributos humanos: acariciam, acompanham, compreendem, ajudam, o perfume te beija e o automóvel é o amigo que nunca falha. A cultura do consumo fez da solidão o mais lucrativo dos mercados.

As angústias enchem-se atulhando-se de coisas, ou sonhando fazê-lo. E as coisas não só podem abraçar: elas também podem ser símbolos de ascensão social, salvo-condutos para atravessar as alfândegas da sociedade de classes, chaves que abrem as portas proibidas. Quanto mais exclusivas, melhor: as coisas te escolhem e te salvam do anonimato multitudinário.

A publicidade não informa acerca do produto que vende, ou raras vezes o faz. Isso é o que menos importa. A sua função primordial consiste em compensar frustrações e alimentar fantasias: Em quem o senhor quer converter-se comprando esta loção de fazer a barba? O criminólogo Anthony Platt observou que os delitos da rua não são apenas fruto da pobreza extrema. Também são fruto da ética individualista. A obsessão social do êxito, diz Platt, incide decisivamente sobre a apropriação ilegal das coisas. Sempre ouvi dizer que o dinheiro não produz a felicidade, mas qualquer espectador pobre de TV tem motivos de sobra para acreditar que o dinheiro produz algo tão parecido que a diferença é assunto para especialistas.

Segundo o historiador Eric Hobsbawm, o século XX pôs fim a sete mil anos de vida humana centrada na agricultura desde que apareceram as primeiras culturas, em fins do paleolítico. A população mundial urbaniza-se, os camponeses fazem-se cidadãos. Na América Latina temos campos sem ninguém e enormes formigueiros urbanos: as maiores cidades do mundo e as mais injustas. Expulsos pela agricultura moderna de exportação, e pela erosão das suas terras, os camponeses invadem os subúrbios. Eles acreditam que Deus está em toda parte, mas por experiência sabem que atende nas grandes urbes.

As cidades prometem trabalho, prosperidade, um futuro para os filhos. Nos campos, os que esperam veem passar a vida e morrem a bocejar; nas cidades, a vida ocorre, e chama. Apinhados em tugúrios [casebres], a primeira coisa que descobrem os recém chegados é que o trabalho falta e os braços sobram.

Enquanto nascia o século XIV, frei Giordano da Rivalto pronunciou em Florença um elogio das cidades. Disse que as cidades cresciam “porque as pessoas têm o gosto de juntar-se”. Juntar-se, encontrar-se. Agora, quem se encontra com quem? Encontra-se a esperança com a realidade? O desejo encontra-se com o mundo? E as pessoas encontram-se com as pessoas? Se as relações humanas foram reduzidas a relações entre coisas, quanta gente se encontra com as coisas?

O mundo inteiro tende a converter-se num grande écran de televisão, onde as coisas se olham mas não se tocam. As mercadorias em oferta invadem e privatizam os espaços públicos. As estações de ônibus e de comboios, que até há pouco eram espaços de encontro entre pessoas, estão agora a converter-se em espaços de exibição comercial.

O shopping center, ou shopping mall, vitrine de todas as vitrines, impõe a sua presença avassaladora. As multidões acorrem, em peregrinação, a este templo maior das missas do consumo. A maioria dos devotos contempla, em êxtase, as coisas que os seus bolsos não podem pagar, enquanto a minoria compradora submete-se ao bombardeio da oferta incessante e extenuante.

A multidão, que sobe e baixa pelas escadas mecânicas, viaja pelo mundo: os manequins vestem como em Milão ou Paris e as máquinas soam como em Chicago, e para ver e ouvir não é preciso pagar bilhete. Os turistas vindos das povoações do interior, ou das cidades que ainda não mereceram estas bênçãos da felicidade moderna, posam para a foto, junto às marcas internacionais mais famosas, como antes posavam junto à estátua do grande homem na praça.

Beatriz Solano observou que os habitantes dos bairros suburbanos vão ao center, ao shopping center, como antes iam ao centro. O tradicional passeio do fim de semana no centro da cidade tende a ser substituído pela excursão a estes centros urbanos. Lavados, passados e penteados, vestidos com as suas melhores roupas, os visitantes vêm a uma festa onde não são convidados, mas podem ser observadores. Famílias inteiras empreendem a viagem na cápsula espacial que percorre o universo do consumo, onde a estética do mercado desenhou uma paisagem alucinante de modelos, marcas e etiquetas.

A cultura do consumo, cultura do efêmero, condena tudo ao desuso mediático. Tudo muda ao ritmo vertiginoso da moda, posta ao serviço da necessidade de vender. As coisas envelhecem num piscar de olhos, para serem substituídas por outras coisas de vida fugaz. Hoje a única coisa que permanece é a insegurança, as mercadorias, fabricadas para não durar, resultam ser voláteis como o capital que as financia e o trabalho que as gera.

O dinheiro voa à velocidade da luz: ontem estava ali, hoje está aqui, amanhã, quem sabe, e todo trabalhador é um desempregado em potencial. Paradoxalmente, os shopping centers, reinos do fugaz, oferecem com o máximo êxito a ilusão da segurança. Eles resistem fora do tempo, sem idade e sem raiz, sem noite e sem dia e sem memória, e existem fora do espaço, para além das turbulências da perigosa realidade do mundo.

Os donos do mundo usam o mundo como se fosse descartável: uma mercadoria de vida efêmera, que se esgota como esgotam, pouco depois de nascer, as imagens que dispara a metralhadora da televisão e as modas e os ídolos que a publicidade lança, sem tréguas, no mercado. Mas a que outro mundo vamos nos mudar? Estamos todos obrigados a acreditar no conto de que Deus vendeu o planeta a umas quantas empresas, porque estando de mau humor decidiu privatizar o universo?

A sociedade de consumo é uma armadilha caça-bobos. Os que têm a alavanca simulam ignorá-lo, mas qualquer um que tenha olhos na cara pode ver que a grande maioria das pessoas consome pouco, pouquinho e nada, necessariamente, para garantir a existência da pouca natureza que nos resta.

A injustiça social não é um erro a corrigir, nem um defeito a superar: é uma necessidade essencial. Não há natureza capaz de alimentar um shopping center do tamanho do planeta.